A modalidade ainda não foi regulamentada, mas os beneficiários já estão recebendo e aceitando ofertas de empréstimos de correspondentes bancários. Os grandes bancos privados não devem oferecer esse tipo de crédito.
Para simular o empréstimo, bastou a Amanda fornecer os números de RG, CPF, conta bancária e o código familiar do benefício. Agora, aguarda a sanção do governo Jair Bolsonaro (PL) para receber em sua conta bancária R$ 2.056. No prazo de 24 meses, pagará parcelas de R$ 160 descontadas diretamente do auxílio a juros de 4,99% ao mês (79% ao ano).
"Eu quis fazer esse empréstimo para poder comprar as coisas para os meus filhos, roupas que eles estão necessitando e coisas para a casa. Estou passando muita dificuldade", afirmou.
De acordo com fontes do governo, a tendência é que o prazo do empréstimo seja de até dois anos. Quanto ao limite máximo de juros, o tema está em discussão. O objetivo, de acordo com pessoas do governo ouvidas pela Folha, é que haja concorrência entre os bancos para deixar os juros menos onerosos aos clientes.
Amanda, que viu o anúncio feito por uma amiga e entrou em contato em busca de socorro financeiro, diz não ter pensado na possibilidade de perder o benefício social antes de ter quitado a dívida.
"Com esse dinheiro, vou conseguir comprar as coisas para as minhas crianças e vou trabalhando, vou ver se consigo guardar um pouco do que ganho com os bicos para poder me manter", acrescentou.
Pela proposta aprovada no Congresso, essas famílias podem comprometer até 40% do Auxílio Brasil com empréstimos. Esse valor equivale a R$ 160 sobre os atuais R$ 400. Quando o benefício subir para R$ 600, de agosto a dezembro, o limite vai para R$ 240 isso significa que, quando o Auxílio Brasil voltar para R$ 400, em janeiro, o comprometimento da renda vai subir para 60%.
Na avaliação de entidades de defesa do consumidor e especialistas em finanças, a oferta do produto pode levar essas famílias ao superendividamento e colocá-las novamente em situação de vulnerabilidade.
Uma preocupação são as taxas de juros, que devem ficar praticamente no mesmo patamar do crédito pessoal sem desconto em folha (atualmente em 87% ao ano). Também estarão mais próximas do cheque especial (133% ao ano) do que do consignado para beneficiários do INSS, que é de cerca de 25% ao ano.
Isso porque as pessoas que recebem o auxílio não têm uma renda vitalícia, mas um benefício temporário. Ou seja, podem deixar de receber o pagamento caso não atendam mais aos critérios do governo. A dívida, no entanto, permanece. Por isso, as garantias para os bancos são menores.
Ione Amorim, economista e coordenadora do Programa de Serviços Financeiros do Idec (instituto de defesa do consumidor), afirma que o argumento de que a linha é uma opção de crédito mais barato para essas famílias não se sustenta.
"A gente [Idec] tem recebido muitas críticas dizendo que tem de garantir o direito ao crédito de baixo custo. Como se tivesse algum crédito barato no Brasil. Esse que vai ser disponibilizado para o Auxílio Brasil, que pode beirar 100% ao ano, é muitíssimo caro", diz a economista.
Com essa taxa, o adiantamento de até R$ 2.400, como tem sido anunciado por algumas financeiras, pode custar praticamente o dobro para o beneficiário e comprometer sua renda por até dois anos.
"Ione lembra ainda que essas famílias não terão a opção de adiar um pagamento em caso de aperto financeiro, como acontece com um devedor de outras linhas, pois o desconto é feito diretamente no auxílio.
"Ao mesmo tempo que o governo concede o benefício, ele transfere para o setor bancário 40% desse valor. Então essas famílias vão continuar em uma situação de vulnerabilidade", afirma.
O presidente da Abefin (Associação Brasileira de Profissionais de Educação Financeira), Reinaldo Domingos, diz que os beneficiários do INSS que ganham o salário mínimo e têm uma renda vitalícia já enfrentam dificuldade em viver com esse comprometimento de renda, situação que se agrava no caso do auxílio.
Pegar o crédito só é válido, segundo ele, para quem tem a perspectiva de conseguir viver com um benefício de R$ 360 até dezembro e de R$ 160 por mês a partir de janeiro.
"O crédito consignado, em vez de benefício, pode ser um grande vilão nessa história. Pode levar [essas famílias] a uma situação muito pior do que já estão. Um benefício de sobrevivência jamais pode ter qualquer valor sendo descontado", afirma.
Especialistas veem terreno fértil para fraudes e golpes
Entidades de defesa do consumidor já relatam fraudes envolvendo o crédito consignado para beneficiários do Auxílio Brasil e esperam que se repita uma prática comum nesse mercado: a liberação de empréstimos sem aval dos clientes, queixa que lidera os rankings de reclamação.
Segundo levantamento da Senacon (Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, de 1º de janeiro a 30 de junho deste ano, foram registradas 35.721 reclamações sobre crédito consignado, cartão de crédito consignado e renda mensal consignada para beneficiários do INSS por meio do portal do consumidor.
Conforme os dados enviados à Folha, as queixas sobre cobrança por serviço ou produto não contratado, não reconhecido ou não solicitado lideram a lista, com 10.608 registros. Na sequência, são 8.418 reclamações por não entrega do contrato ou documentação relacionada ao serviço.
No Sindec (Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor), que integra 26 Procons estaduais, o do Distrito Federal e mais de 600 municipais, foram registrados mais 21.005 problemas.
A medida aprovada pelo Congresso, além de permitir o empréstimo consignado para quem recebe o Auxílio Brasil, define que beneficiários do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) terão a margem consignável ampliada de 40% para 45%, sendo 5% reservados exclusivamente para operações com cartões de crédito consignado.
No final do primeiro trimestre deste ano, o valor da renda que poderia ser comprometido já havia passado de 35% para 40%. Segundo dados do Banco Central, no período, houve uma alta de 130% nas concessões, para R$ 13,4 bilhões em abril.
"O crescimento foi puxado por essa mudança regulatória específica para o beneficiário do INSS, mas todas as demais modalidades de crédito pessoal também cresceram", ressaltou o chefe do departamento de Estatísticas do BC, Fernando Rocha.
Ione Amorim, do Idec, afirma que, nas vezes em que houve ampliação da margem consignável, as contratações dispararam, com muitas concessões sem consentimento, o que foi seguido por uma explosão de reclamações.
Em sua avaliação, o mesmo deve ocorrer em relação ao auxílio. Ela diz que já há relatos de beneficiários vitimados por golpes aplicados por pessoas de fora do sistema bancário.
O mês de março também foi marcado pela liberação do crédito consignado a quem recebe o BPC/Loas (Benefício de Prestação Continuada) idosos que tenham a partir de 65 anos ou pessoas com deficiência de qualquer idade em situação de miséria social.
Quando soube da autorização do governo para essa categoria, Morgana Gomes decidiu recorrer ao empréstimo consignado para ajudar nas despesas médicas da mãe, Eni, 74, que tem demência e depressão e vive hoje em uma casa de repouso em Porto Alegre.
O salário mínimo recebido pela idosa é insuficiente para cobrir os gastos mensais em torno de R$ 2.000, incluindo medicamentos, consultas e a mensalidade da clínica.
"No início, tirei R$ 3.000 para pagar uma dívida que já vinha se acumulando no cartão de crédito, com compra de fraldas e medicações. Agora ficou melhor, tenho uma reserva para os gastos com ela", disse Morgana, que solicitou em nome da mãe um empréstimo no valor de R$ 17.000 a ser pago em 72 parcelas de R$ 434.