O Conselho Comunitário de Jericoacoara divulgou nesta quinta-feira, 14, um novo documento de valor cartorário, publicado 24 anos atrás no Diário Oficial do Estado (DOE), para reforçar os argumentos de que a empresária Iracema Correia São Tiago, de 78 anos, não teria propriedade particular sobreposta à área da vila de Jeri. Em análises ao histórico fundiário da região, o Conselho resgatou a portaria nº 102/2000, do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace).
O órgão menciona uma certificação emitida pelo Cartório de Acaraú, de que não havia propriedades registradas ou sob posse na área hoje em disputa, onde está a Área de Preservação Ambiental (APA) de Jericoacoara. A citação foi publicada no DOE de 21 de março de 2000 e permitiu a incorporação de terrenos sem proprietários ou posseiros regularizados ao patrimônio estadual.
O documento é um dos que estão anexados na manifestação formal de defesa, feita pelo Conselho Comunitário, apresentada na tarde de quarta-feira, 13, à Procuradoria Geral do Estado (PGE). A entidade representa moradores, comerciantes e empresários, que questionam a validade dos papéis imobiliários da empresária. A PGE confirmou ao O POVO ter recebido a manifestação do Conselho Comunitário protocolada no órgão na tarde de quarta, 13, e que "irá analisar as documentações apresentadas" para se pronunciar sobre o material recebido.
A portaria faz referência a uma "Certidão Negativa da Inexistência de Matrícula e/ou Registro ou Transcrição da Transmissão Imobiliária expedida pelo Titular do 2º Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Acaraú". O Idace requisitou a certidão à época do processo de regularização fundiária na região, realizado entre 1995 e 2000. Por falta de domínio particular ou qualquer reclamação administrativa, o Estado “arrecadou sumariamente” naquele momento 6.183,1810 hectares (“seis mil cento e oitenta e três hectares, dezoito ares e dez centiares”) como terras públicas.
O Conselho destaca que, ao detalhar as coordenadas da área arrecadada e listar seus confinantes, a portaria do Idace especifica que era mais ao sul que estavam as terras da empresa M.Machado, de propriedade da família do ex-banqueiro Manoel Machado. Tanto em relação ao Parque Nacional de Jericoacoara como no trecho onde houve a regularização. O lugar é mais conhecido como “firma Machado” entre os moradores mais antigos de Jeri.
O Cartório de Acaraú é o mesmo onde o empresário José Maria de Morais Machado, ex-marido de Iracema e filho de Manoel Machado, teria registrado, em janeiro de 1983, os documentos da Fazenda Junco I, que seria coincidente com o território da vila. O casal se divorciou em 1995, quando a mulher herdou os bens divididos. Ela também recebeu as fazendas Junco II e Caiçara, que têm trechos sobrepostos com a área do Parque Nacional de Jericoacoara. Machado morreu em 2008.
Na documentação apresentada pelo Conselho à PGE consta, além da portaria 102/2000, o laudo assinado pelo engenheiro cartógrafo Paulo Roberto Lopes Thiers, doutor em geografia e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). O levantamento questiona o tamanho das terras da empresária e aponta que teriam sido ampliadas de forma "indevida e inexplicável". A propriedade teria crescido 109% a partir de averbações feitas em cartórios da região, segundo o especialista.
Durante a regularização das terras, entre 1995 e 2000, o Conselho Comunitário lembra que o Idace criou o “Comitê de Acompanhamento da Regularização Fundiária de Jericoacoara”, que incluía os moradores para garantir a legitimidade das posses cadastradas. Houve um levantamento topográfico detalhado e a geração de documentos que atestaram a inexistência de propriedades privadas na área arrecadada.
Em acordo com Estado, atualmente suspenso, empresária fica com 19 lotes na vila
Em julho de 2023, com a escritura em mãos, os advogados de Iracema Correia São Tiago procuraram o Estado reivindicando a propriedade e propondo acordo para assumir somente áreas remanescentes, sem ocupações. O Conselho contesta, junto à PGE, que a empresária seja "a dona" de mais de 80% (73,5 hectares) de terras sobrepostas à vila de Jeri (55 hectares). E questiona o acordo que já havia sido firmado entre ela e o Estado do Ceará, para que recebesse 19 lotes dentro da localidade (que somam 3,47 hectares) e abrisse mão de terrenos com habitações ou estabelecimentos comerciais.
O acordo estava assinado desde maio deste ano, mas foi descoberto pela comunidade somente em meados de outubro último, quando reivindicou o uso de um terreno da vila para a construção de uma horta comunitária. No dia 14 de outubro, a PGE suspendeu por 20 dias o acerto com a empresária, para aguardar uma manifestação formal da entidade de moradores. Depois, a suspensão se estendeu por tempo indeterminado, para uma nova pesquisa cartorária sobre as terras, com a possibilidade de revisão das bases do acordo.
Defesa de empresária diz que estudo é "tendencioso"
Procurada pelo O POVO, a defesa de Iracema Correia informou que até o inicio da noite desta quinta-feira, 14, ainda não havia acessado os argumentos apresentados pelo conselho, sendo informada apenas pela imprensa, e destacou que vai apresentar sua contra-argumentação quando for comunicada pela PGE. Contudo, órgão diz ter "estranhado" o laudo feito pelo engenheiro Paulo Roberto, afirmando que estudo "ignorou a existência dos limites físicos ao Norte da Fazenda Junco I".
O Povo