Paraíso turístico e um dos mais cobiçados (e concorridos) destinos no Nordeste brasileiro, a Vila de Jericoacoara, no litoral do Ceará, se viu colocada no centro de uma disputa depois que uma empresária apresentou um documento dizendo-se proprietária de nada menos que 80% daquelas terras.
O que a empresária alega? Iracema Correia São Tiago afirma que a vila fica dentro de uma imensa área reivindicada por ela (veja o infográfico abaixo). A mulher afirma que, em 1983, seu então marido, José Maria de Morais Machado, adquiriu três terrenos na região (totalizando 714,2 hectares): um deles pertencia à companhia Florestal Sobral LTDA; o outro, a um casal que morava na região; e o terceiro, a um morador local. Os três terrenos deram origem à fazenda Junco I.
O que diz a escritura apresentada? A escritura pública aponta a compra dos terrenos, com situação regularizada conforme Certificado de Cadastro de Imóvel Rural.
Quantos hectares de Jericoacoara estariam nesse terreno supostamente particular? Dos 88,2 hectares que correspondem à vila, 73,5 (ou 83% do total) estariam na área que pertenceria à empresária.
Qual é a atual situação da Vila de Jericoacoara? A vila fica no município de Jijoca de Jericoacoara e é uma área arrecadada. Isso quer dizer que ela foi incorporada ao patrimônio público, uma vez que não havia sido localizado um proprietário com escritura pública. O processo de regularização fundiária começou em 1995 e concluiu-se em outubro de 1997. No início, a vila tinha 55,3 hectares. Hoje, são 88,2.
Quando a empresária reivindicou a posse? Em julho de 2023, Iracema apresentou a escritura ao Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace), que por sua vez a encaminhou à Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE). A PGE tem atribuição legal de defender direitos e interesses sobre o patrimônio imobiliário do Ceará. Recentemente, o órgão emitiu um parecer oficial apontando a escritura como legítima. O g1 teve acesso a documentos do processo.
Qual foi o parecer da procuradoria? Segundo a PGE-CE, o estado é obrigado a reconhecer a propriedade da empresária. Em nota, o órgão diz: “Ficou comprovado, à vista de documentos oficiais, que, na matrícula arrecadada referente à Vila de Jericoacoara, havia um registro anterior de propriedade abrangendo praticamente toda a Vila”.
Qual foi a decisão da PGE? A PGE está tentando negociar um acordo extrajudicial, instrumento utilizado quando duas partes de um conflito negociam a resolução do problema de modo consensual e sem recorrer a um tribunal.
O que o acordo extrajudicial prevê? Que a empresária renuncie às áreas ocupadas por moradores ou construções, preservando também vias e acessos locais; por outro lado, seriam repassados a ela terrenos não ocupados e que ainda estão em nome do estado. Nenhum título foi emitido em nome de Iracema. Atualmente, o detalhamento sobre os terrenos a serem desmembrados da vila está em fase de estudos.
O que a PGE argumenta? Em nota, a Procuradoria-Geral afirma que conduziu um acordo que protege as famílias que trabalham e residem na região. Segundo o órgão, caso toda a área reconhecida fosse retirada da matrícula do estado, residentes e comerciantes locais poderiam ser obrigados judicialmente a sair de suas casas e estabelecimentos.
O que dizem moradores da região? Ao g1, disseram que ficaram sabendo do processo há menos de uma semana. Eles alegam estar surpresos com a negociação sobre áreas públicas da vila e temem prejuízos à paisagem e à preservação do lugar. Temem ainda que sejam erguidas novas construções em áreas verdes e em locais que hoje compõem a paisagem local. No domingo (13), eles fizeram um protesto.
“Nós temos os nossos bosques, que são abertos, que são cuidados pelas pousadas, mas são abertos para a população, para os turistas”, afirma Lucimar Marques, presidente do Conselho Comunitário de Jericoacoara.
O que é o Parque Nacional de Jericoacoara? O parque tem uma área de 8.863 hectares e atualmente é administrado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão do governo federal responsável pela gestão de unidades ambientais. Ao g1, o ICMBio informou que sabe do caso e que vem acompanhando informações repassadas pelo Conselho Comunitário de Jericoacoara.
A vila faz parte do parque? Não. Segundo o ICMBio, a vila turística fica fora do território do Parque Nacional de Jericoacoara e faz parte da área urbana do município de Jijoca de Jericoacoara.
O g1 entrou em contato a defesa da empresária e pediu uma entrevista ou um posicionamento sobre o caso, mas não havia tido retorno até a última atualização desta reportagem.
As três propriedades da empresária estão inseridas no Parque Nacional de Jericoacoara (linha verde).
Detalhes do terreno alegado pela empresária
Acordo busca resguardar residentes, estabelecimentos e vias de acesso que já existem na Vila de Jericoacoara.
Após mudanças nos serviços de cartórios da região, a matrícula de três terrenos indicados no documento apresentado por Iracema foi unificada. Passou, então, a considera uma matrícula única para todas as áreas, referindo-se a uma só propriedade, chamada Fazenda Junco I. É dentro dela que fica a Vila de Jericoacoara.
Com esta unificação e após levantamento topográfico, a Junco I passou a ter um total de 924,4 hectares. O processo não aponta justificativa pelo o fato de a área do terreno ter aumentado após a unificação das matrículas.
Segundo a PGE-CE, é comum que a unificação de matrículas aumente ou reduza áreas do território. Isso porque, por meio da unificação, pode haver ajuste da área do imóvel caso se mostre necessário na apresentação da planta. Um exemplo é quando parte do imóvel cortava uma estrada que deixou de existir depois de um tempo.
Veja, abaixo, detalhes sobre a propriedade Junco I:
- As terras foram compradas pelo ex-marido da empresária. O casal se divorciou em 1995, e a empresária ficou com as terras na partilha dos bens.
- À época da compra, as terras totalizavam 714,28 hectares. O valor total pago pelos três imóveis, que depois viraram a Fazenda Junco I, foi de 620 mil cruzeiros.
- A Fazenda Junco I, agora com um total de 924,4 hectares, se estende na porção Norte do município de Jijoca de Jericoacoara, com áreas que se sobrepõem ao Parque Nacional de Jericoacoara e à Vila de Jericoacoara.
- A porção do imóvel que se sobrepõe à vila é de 73,5 hectares, correspondendo a cerca de 83% do que hoje é a vila (que tem 88,2 hectares).Iracema tem outra fazenda na mesma região. Elas estão fora da Vila de Jericoacoara, mas ficam dentro do parque nacional.
- Outros dois terrenos no interior do parque formam uma só fazenda, chamada de Caiçara, que pertence a uma empresa privada.
As propriedades de Iracema estão no Parque Nacional de Jericoacoara, com a Fazenda Junco I sobrepondo a Vila de Jericoacoara. Em 2022, o ICMBio pediu ao Idace que verificasse a sobreposição dessas terras, o que foi confirmado. Em 2024, o Consórcio Dunas venceu o leilão de concessão do parque por R$ 61 milhões, com investimentos estimados em R$ 116 milhões.
A regularização fundiária da vila começou em 1995, e em 2019, o filho de Iracema solicitou o título de um lote na Fazenda Junco I. Um acordo foi proposto em 2023 para ceder parte das terras ao estado, mas negociações ainda estão em curso. Moradores foram surpreendidos pelo acordo e pediram uma investigação ao Ministério Público.
Com informações do G1